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ALFREDO BUZAID – O GRANDE PROCESSUALISTA, MESTRE E CHEFE DE ESCOLA (homenagem póstuma)

“...Ser continuador não significa explanar, como simples intérprete, as idéias do mestre. Se o seu oficio consiste apenas em repetir o ensinamento alheio, a escola cumpriria um desígnio tristemente medíocre. Outra bem outra, a sua nobre missão. A missão primordial da escola é renovar, progredir, aprofundar o conhecimento, revelar o incógnito, estimular a especulação, desenvolver o ânimo criador e melhorar as instituições sociais. A escola vive entre dois mundos: o passado e o porvir. O presente é o seu ponto de encontro. Deve ser uma renascença e um arrebol...” (ALFREDO BUZZAID, Os Grandes Processualistas, São Paulo, Saraiva, 1982, pág. 5).

 

 

Destina-se o presente ensaio a fazer um retrospecto da vida deste grande processualista, mestre e chefe de escola, como reconhecimento e gratidão imperecedoura, a quem dedicou nada menos do que meio século de sua existência à causa do direito, do social e da justiça.

 

Assim, nada mais oportuno do que a escolha desta época, marcada pelo segundo ao do seu falecimento, para lembrarmos, em forma de homenagem, os inúmeros feitos e a preciosa herança por ele deixada.

 

Tudo começou com a providente chegada do Prof. LIEBMAN ao Brasil, em 1941. Após uma breve estada na faculdade de direito da Universidade de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, instalou-se definitivamente em São Paulo, onde passou a ministrar o curso de extensão universitária na faculdade de Direito, embrião da escola processual paulista, permanecendo entre nós até o final da Segunda Guerra, retornando em 1946 da Itália, para dar seqüência ao seu ministério de consagrado mestre, na “Università Degli Studi di Milano”.

 

As lições universitárias de LIEBMAN e os assíduos encontros em sua residência, onde recebia cordialmente seus alunos, se transformam no berço do movimento de renovação científica do direito processual civil [1] .

 

O Prof. Buzaid era um daqueles que tiveram a ventura de integrar esse grupo de estudiosos[2], ocasião em que se preparava para o concurso de docência da Faculdade de Direito de São Paulo.

 

Pouco tempo depois, as sementes lançadas por LIEBMAN, e muito bem tratadas por esses cultivadores do direito, começam a gerar seus primeiros frutos, tais como o Instituto de Direito Processual Civil e a Revista de Direito Processual[3]. Em todas essas conquistas, assim como na sua manutenção e evolução, o Prof. BUZAID foi sempre personalidade marcante, deixando-nos raros e primorosos subsídios científicos.

 

Sua dedicação para com o estudo da doutrina processual foi intensa, num esforço incomum de corresponder às expectativas nele depositadas pelo Mestre italiano e de bem exercer a missão que lhe foi confiada por Deus. Por isso dizia, com muita propriedade, que “o cultor da ciência jurídica, ao estudar um tema ou escrever um livro, se esmera por conhecer toda a bibliografia que lhe diz respeito, lendo não só as obras como também as monografias”[4]. Assim, cônscio dessas verdades, transformou-se em prática cotidiana, não sendo por mero acaso que suas inúmeras contribuições foram sempre pautadas na mais pura investigação científica, por intermédio da utilização rigorosa do método histórico-dogmático.

 

Características distintas de seus escritos são a simplicidade e a ordenação sistemática das idéias, que brotam em cada palavra, em cada linha, em cada parágrafo, como água cristalina, saciando a sede de saber de todos os leitores que ao Mestre recorrem.

 

O Saudoso Prof. ALFRED BUZAID, sem a mínima sombra de dúvida, ultrapassou em muito os limites de professorar. Seguindo o estilo europeu, preocupou-se desde o início com a perquirição incessantes dos institutos do direito, e, em particular, com o processual civil, oferecendo uma contribuição efetiva e inconteste para o seu desenvolvimento.

 

CHIOVENDA foi o fundador da nova escola processual italiana; LIEBMAN criou a ciência e a escola processual brasileira; BUZAID afirmou a existência dessa escola, dando seguimento, com brilhantismo, ao trabalho de seu criador.

 

Vanguardista emérito da Escola de Direito Processual de São Paulo – reconhecida e conceituada no mundo jurídico desenvolvido -, juntamente com LIEBMAN, de quem se intitulava modestamente discípulo, mas na verdade seu amigo e colaborador, o Prof. BUZAID foi um daqueles mestres que souberam chefiá-la com altivez, desprendimento e espírito científico.

 

Ainda jovem, começa sua trajetória de insigne doutrinador publicando, em 1939, na Revista Judiciária, artigo sobre o Despacho Saneador; quando tinha apenas 29 anos de idade, vem a lume o seu primeiro livro, intitulada Da Ação Declaratória no Direito Brasileiro (mais tarde, em 1986, a segunda edição, dessa feita revista e aumentada, com adaptações da nova Lei Processual), iniciando a Coleção de Estudos de Direito Civil, dirigida pelos Professores SOARES DE FARIA e ENRICO TULLIO LIEBMAN.

 

Em 17 de agosto de 1946, através da monografia Do Agravo de Petição no Sistema do Código de Processo Civil, é aprovado à livre-docência da Universidade de São Paulo e em 23 de maio de 1953 conquista a cátedra de Direito Judiciário Civil na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com a tese Do Concurso de Credores no Processo de Execução.

 

Em 1957, inscreve-se no concurso à cátedra de Direito Judiciário Civil na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, obtendo distinção em todas as provas, apresentando como tese a monografia Da Ação renovatória de contrato de locação de prédio destinado a fins comerciais ou industriais. Assumiu em 8 de maio de 1958.

 

   Nesse mesmo ano (1958), juntamente com os ilustres Professores LUIZ EULÁLIO DE BUENO VIDIGAL, JOSÉ FREDERICO MARQUES e GALENO LACERDA, fundou em Porto Alegre o Instituto Brasileiro de Direito Processual, tendo sido escolhida como sede a cidade de São Paulo, onde BUZAID assumiu as funções de secretário-geral e exerceu atividade de direção.

 

Em 1960 fundou a Revista de Direito Processual Civil, sendo o diretor responsável pela sua publicação.

 

No plano doutrinário deixou-nos ainda, precipuamente, como legado inestimável: Estudos de Direito, reunindo ensaios de natureza processual, escritos doutrinários e conferências proferidas durante um quartel de século; Os Grandes Processualistas, onde expõe analiticamente e de maneira sinóptica a doutrina dos grandes mestres italianos e brasileiros, numa homenagem a CHIOVENDA, LIEBMAN, PAULA BATISTA, JOÃO MENDES DE ALMEIDA JR. e ESTAVÃO DE ALMEIDA, além de discorrer sobre outros estudiosos não menos ilustres; Da apelação ex officio; Paula Batista (atualidades de um Velho Processualista); A escola de Direito de Beirute; Da ação Direta de Inconstitucionalidade; Da Ação Renovatória; Tradução, com a colaboração do BENVIDO AIRES, da obra de LIEBMAN: Eficácia e Autoridade da Sentença[5].

 

O domínio da matéria que tanto lhe fascinava era tão amplo e profundo que recebeu o honroso convite do então Ministro da Justiça, Oscar Pedroso Horta, para elaborar o texto do Anteprojeto do Código de processo Civil. Concluiu o trabalho em 1964, mais tarde revisto pela comissão composta pelos notáveis professores e juristas JOSÉ FREDERICO MARQUES, CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES E LUIZ ANTÔNIO DE ANDRADE.

 

Sua participação na política legislativa revela a fervorosa devoção aos ensinamentos dos mestres italianos, em particular doutrina de CHIOVENDA e LIEBMAN, ao desenvolvê-las e adaptá-las à nossa realidade e necessidade nacionais.

 

Em 1966, assume o cargo de Diretor da Faculdade de Direito da USP. Por duas vezes interrompeu essa função para assumir a reitoria da Universidade, onde permaneceu cerca de um ano.

 

Em 1967, durante o governo Costa e Silva, foi nomeado coordenador da revisão de códigos, cuja atribuição principal era o controle da elaboração de diversos projetos.

 

Foi eleito, em 1968, presidente da Academia Nacional de Direito, que reunia 40 juristas brasileiros, e, no ano seguinte, nomeado vice-reitor da USP.

 

Como homem público, a convite do General Emílio Garrastazu Médici, assumiu a pasta da Justiça em 30 de outubro de 1969, importando na aceitação de um dos maiores desafios de sua vida, pois vigorava a ditadura militar e um período de forte repressão. Permaneceu no cargo até 14 de março de 1974.

 

Isso acarretou-lhe incompreensões e desgostos, mas não foi o suficiente para esmorecer um homem da sua envergadura. Por certo, os desmandos do autoritarismo não foram maiores graças à presença atuante, equilibrada e justa do Prof. BUZAID.

 

Teve a oportunidade de elaborar a Exposição de Motivos do atual Código Instrumental Civil e de submeter à apreciação dos membros do Congresso nacional, em 1972, o projeto de lei do “Código de Processo Civil”, cujo esboço inicial era de sua lavra, terminando por ser aprovado e sancionado em 11 de janeiros de 1973.

 

Também em 1973, como literato, foi eleito membro da Academia paulista de Letras, titular da cadeira n. 31. Ao deixar o governo no ano seguinte, retorna às suas atividades de advogado e professor.

 

Em 1978 tomou posse na cadeira n. 46 da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.

 

Coroando sua missão, foi indicado pelo presidente da República General João Batista Figueiredo para ocupar o cargo de Ministro da mais alta Corte de Justiça de nosso País, sendo empossado em 30 de março de 1982, onde permaneceu durante dois anos e poucos meses, aposentando-se compulsoriamente. Era, sem dúvida, o homem certo para o lugar certo.

 

Sua nomeação para integrar o Pretório Excelso significou o reconhecimento de seu inconteste elevado saber jurídico, honradez e retidão moral, consagrando uma vida inteira dedicada às coisa do direito e da justiça.

 

Não obstando o curto período de tempo em que ali prestou seus serviços, teve a oportunidade de, mais uma vez, ofertar a sua preciosa colaboração, abrilhantando o Supremo Tribunal Federal e deixando-nos inúmeros arestos contendo lições marcadas pelo seu profundo conhecimento jurídico[6].

 

Como se não bastasse, seu nome rompeu as fronteiras nacionais, tendo sido membro da Associação Italiana de Processo Civil, com sede em Firenze, do Instituto Ibero-Luso-Filipino e Americano de Processo Civil, editada sob os auspícios do mencionado Instituto, também em Madrid.

 

Em seguida, o culto Ministro destaca alguns desses votos proferidos pelo Prof. BUZAID.

 

No dia 9 de julho de 1991, pouco antes de completar 77 anos, terminava a jornada desse missionário do direito, que nos deixou uma herança jurídica, literária e legislativa das mais raras.

 

O homem consagra-se durante a sua breve passagem por esse mundo pelas ações e obras deixadas, singulares monumentos que conseguem imortalizá-lo.

 

O professor transforma-se em mestre quando, através do seu notável saber, torna-se mais elevado cientificamente, superado a si próprio, sagrando-se na arte de ensinar.

 

Mestre é aquele que transcende o nobre ofício de ensinar e, imbuído de um espírito altamente científico, adentra o labirinto dos intermináveis pensamentos doutrinários, passados e hodiernos, para, depois de prolongados estudos e reflexões, traduzir os anseios dos conhecimentos de seu tempo, transmitindo aos seus discípulos sua concepção analítica dos fatos, cônscio da missão de criador e divulgador de um novo tempo.

 

Assim foi ALFREDO BUZAID.

 

Por isso, ao incomparável Processualista, Mestre e Chefe de Escola, a nossa saudade e o nosso tributo.

 

 

 

                                                                                                                         Eficácia e Au

 

* Pós-graduando em Direito Civil e Processual Civil pela “Università Degli Studi di Milano”- Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual e do Instituto dos Magistrados do Brasil – Professor Titular de Teoria Geral do Processo (UNOESC) – Ex professor da Escola Superior da Magistratura.

 

[1] Alfredo BUZAID, Os Grandes processualistas, São Paulo, Saraiva, 1982, pág. 10. Em nota de rodapé (n°6) assinala que “Esse movimento científico de renovação do direito processual civil foi designado por NICETO ALCALA-ZAMORA Y CASTILHO como A Escola Processual de São Paulo (cf. Revista Interamericana de Bibliografia, vol. 5, nº 3, pág. 145 e segs.) e recentemente confirmado por SANTIAGO SENTIS MELENDO (Revista de Derecho Processal, 1965, vol. 2, pág. 130).”

 

[2] Formam essa plêiade de processualistas LUIZ EULÁLIO DE BUENO VIDIGAL, BRUNO AFFONSO DE ANDRÉ, BENVIDO AIRES e JOSÉ FREDERICO MARQUES.

 

[3] Sobre o assunto, v. BUZAID, Revista de direito processual civil, vol. 1, ‘Um sonho que se realiza’, págs. 5 e segs.

 

[4] Alfredo BUZAID, Os Grandes Processualistas, pág. 8.

 

[5] Deixou-nos também inúmeros artigos e pareceres doutrinários publicados em diversas diversas revista, valendo citar, dentre tantos outros: Da ação rescisória fundada em documento novo (Ajuris 24/35); Uniformização da Jurisprudência (Ajuris 34/189); É constitucional o art. 33 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição de 1988? (RF 331/17 e RT 669/70); Mandado de segurança, “injuctions” e “Mandamus” (RP 53/6); Do prazo para impetrar Mandado de Segurança (RP 53/100); Da liquidação por artigos em ação de ressarcimento de perdas e danos (RP 43/9); Da intervenção do Estado no Município (Revista do curso de Direito da Univ. Fed. De Uberlândia, 14/1); Ensaio sobre a alienação fiduciária em garantia (Lei n° 4.728, de 1965, art.66)(RT 401/9); Funcionário Público – parecer (RT 372/41); Direito subjetivo e ação. Locação. Despacho saneador - parecer (Rt 368/40); vários estudos sobre matérias diversas publicados nos Arquivos do Ministérios da Justiça. Publicou também estudos literários e históricos, tais como Camilo – o Católico, Pedro II, José Bonifácio – Patriarca da Independência e muitos outros.

 

[6] Em Homenagem Póstuma a ALFREDO BUZAID, assim escreveu o Min. MOREIRA ALVES: “...Quem se detiver no exame de seus arestos estampados na ‘Revista Trimestral de Jurisprudência’ e que melhor aqui produziu por terem sido selecionados por ele mesmo, verificar o cuidado com que examinava as questões em julgamento, a limpidez e o cartesianismo de seu pensamento, a exatidão técnica de suas formulações jurídicas, a profundidade de sua cultura sem a ostentação da erudição fácil e desnecessária, o perfeito conhecimento da jurisprudência do Tribunal só possível a quem tinha o antigo trato com ela. Em estilo ético, e com síntese e a objetividade que o caracterizavam, versou, com a mão de mestre, todos os problemas de direito público e de direito privado que afluíam a esta Corte nos terrenos legal e constitucional, antes do advento da atual Constituição...” (Revista de Processo, vol. 64, pág. 277).