Artigos



A EXTENSÃO DO CONCEITO DE “BOA-FÉ” EM LIMITAÇÃO AO DIREITO DE PROPRIEDADE


    I – Introdução

    O novo Código Civil, entre tantas outras inovações em sede de direito real de propriedade, trouxe a lume uma forma de limitação, aquisição e perda de bem imóvel, insculpida no art. 1.228, §§ 4° e 5°, “in verbis”: “Art. 1228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. § 1° O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. § 2° São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem. § 3° O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente. § 4° O proprietário pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante. § 5° No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores” (grifei).

    Esse novo instituto limitador da propriedade imobiliária tem a natureza jurídica híbrida, visto que assemelhado com a usucapião social (oneroso, todavia) e, simultaneamente, com a “desapropriação indireta” (expropriação judicial), diante da exigência estabelecida de pagamento de uma “justa indenização devida ao proprietário” sucumbente em ação reivindicatória, condição indispensável à validade da sentença (eficácia jurídica) para o registro do bem em nome dos possuidores (aquisição da propriedade).

    Esse estudo não objetiva analisar dogmática ou criticamente o dispositivo em questão ou, muito menos, os seus desdobramentos; o escopo deste trabalho limita-se tão somente a fazer uma reflexão a respeito da expressão “boa-fé” utilizada no § 4/ do art. 1.228 do CC, em face dos seus importantes reflexos de ordem político-social, jurídico e fatual, tudo na dependência da interpretação a ser conferida em sede doutrinária (e jurisprudencial) sobre o tema proposto.

   

    II – A vontade da lei e do legislador

    A nova figura jurídica insculpida no art. 1.228, §§ 4° e 5° do nCC é mais um dispositivo sintonizado com a função social da propriedade, conforme orientação definida originariamente na Constituição Federal (art. 5°, inc. XXIII), onde a posse assume relevo destacado, como situação fática com carga potestativa formadora de relação sócio-econômica entre um bem da vida e o sujeito, hábil a produzir efeitos no mundo jurídico. Significa dizer que na posse reside a função da propriedade, ou, em outras palavras, não há função social da propriedade sem posse (cf. Joel Dias Figueira Júnior, Novo Código Civil Comentado, art. 1196. Pp. 1093/1096, 4. Ed, Saraiva, São Paulo, 2005 – Coordenação de Ricardo Fiuza).

    Sobre a intenção do legislador na criação desse instituto híbrido (misto de usucapião social e desapropriação indireta), colhe-se do Relatório do Deputado Ricardo Fiuza (Relator-Geral do projeto de lei do nCC) que, por sua vez, recepcionou o relatório do Deputado Ernani Satyro, absorvendo os argumentos sócios-jurídicos da palavra de Miguel Reale, o seguinte excerto: “... Um dos pontos mais altos do projeto, no que se refere ao primado dos valores do trabalho, como uma das causas fundantes do direito de propriedade. De outro lado, não há, a nosso  ver, nada de surpreendente no fato de ser atribuído ao juiz competência para, no caso especialíssimo previsto no art. 1.228, declarar a desapropriação dos bens reivindicados, a fim de que seja pago ao reivindicante o justo preço do imóvel, sem se locupletar ele à custa dos frutos do trabalho alheio. Como bem observou o relator especial, os múltiplos casos de ‘desapropriação indireta’, que são casos típicos de ‘desapropriação pretoriana’, resultante das decisões de nossos tribunais, estão aí para demonstrar que o ato expropriatório não é privilégio nem prerrogativa exclusiva do Executivo ou do  legislativo. Nada existe que se torne ilegítimo que, por lei, em hipóteses excepcionais, o poder de desapropriar seja atribuído ao juiz, que resolverá em função das circunstâncias verificadas no processo, em função do bem comum . “Sobretudo depois que a lei de usucapião especial veio dar relevo ao trabalho como elemento constitutivo da propriedade, conferindo efeitos dominicais à ‘posse-trabalho’ (consoante terminologia do Prof. Miguel Reale, em sua Exposição de Motivos, ou a posse pro labore, segundo expressão do Estatuto da Terra), tornou-se mais um imperioso dar garantia, no  código, àquelas situações em que se defrontam, de um lado, o possuidor de boa-fé, com o produto de seu trabalho, e do outro, o proprietário com seu título de domínio. Para atender a esse conflito de interesses sociais, o Projeto prevê que o juiz não ordene a restituição do imóvel ao reivindicante, que teve êxito na demanda, mas que lhe seja pago o justo preço. Solução eqüitativa e do maior alcance sócio-econômico, sobretudo porque tem em vista regularizar, de maneira prática e imediata, a situação de considerável número de pessoas que, por mais de cinco anos, com boa-fé, houverem realizado, em extensas áreas, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social relevante” (grifei).

    Ainda sobre o tema, extrai-se do Relatório final, do Relator Deputado Ricardo Fiuza, apresentado à Comissão Especial de Reforma do Código Civil “...O projeto buscou, desde sua elaboração originária, o ponto de equilíbrio entre o direito de propriedade, eminentemente privado e satisfativo dos interesses individuais, e a função social da propriedade, eminentemente pública e geradora de obrigações e deveres para com a coletividade (...)

    “Aparentemente, a modernidade residiria justamente no incremento das obrigações sociais ligadas à noção de propriedade. Como fez ver o Prof. Miguel Reale o ‘sentido social’ é uma das características mais marcantes do projeto, em contraste com o sentido individualista que condiciona o Código Civil ainda em vigor. (...) Em virtude do princípio da sociedade, surgiu também um novo concenso de posse, a posse-trabalho, ou posse ‘pro-labore’, em virtude da qual o prazo de usucapião de um imóvel é reduzido, conforme o caso, na hipótese dos possuidores terem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico. Por outro lado, foi revisto e atualizado o antigo conceito de posse, em consonância com os fins sociais da propriedade.”

    “Em suma, tem-se que o projeto disciplina o Direito Real considerando um ‘novo conceito de propriedade, com base no princípio constitucional de que a função da propriedade é social, superando-se a compreensão romana quiritária da propriedade em função do interesse exclusivo do indivíduo, do proprietário e do possuidor.”

    Ora, se por um lado ficou patente a intenção do legislador, assim confirmada pelo inteiro teor do art., 1.228, há de se questionar o alcance sócio-jurídico desse dispositivo no que concerne à nova modalidade de limitação, perda e aquisição da propriedade privada, de natureza híbrida, como dissemos no início deste estudo, na exata medida em que se aproxima tanto da usucapião (social) quanto da desapropriação (indireta ou pretoriana). É o que veremos à seguir.

   

    III - identificação do problema posto

    Como demonstramos, se o legislador buscou o equacionamento entre o direito de propriedade e a sua  respectiva função social, isto é, de acordo com efetivo exercício do poder fático sócio-econômico  sobre determinado imóvel (posse pro labore), havemos de questionar qual a interpretação a ser conferida à expressão boa-fé (?), inserta na redação do § 4° do art. 1.228 do CC, quando se sabe, de antemão , que os ocupantes (“considerável número de pessoas”) de “extensa área de terra”, têm plena ciência que o bem por eles possuído não lhes pertence, mas sim à terceira pessoa.

     Parece-nos que o legislador não foi feliz ao utilizar no dispositivo em comento a expressão boa-fé, inadequada e incompatível com o seu conceito universal e secular, ou seja, a lei disse menos (e equivocadamente) do que desejava o legislador, sendo manifesta a sua contradição com dispositivo do próprio Código, mais especificamente o art. 1.201, caput: “É de boa-fé a posse, se o possuído ignora o vício, ou obstáculo que impede a aquisição da coisa”.

     É assente que, via de regra, essas ocupações são clandestinas, não raramente violentas (posse viciada), o que por si só desfaz qualquer possibilidade de admissão do elemento subjetivo identificado como boa-fé.

    

     IV – A “boa-fé” em sede legislativa, doutrinária e jurisprudencial

     Bastante clara a redação do art. 1.201 do CC (idêntico ao art. 490 do CC/16), in verbis “Art. 1.201. É de boa fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa. Parágrafo único. O possuidor com justo título tem por si a presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite esta presunção.”

    Em arremate, o art. 1.202 do CC (idêntico ao art. 491 do CC/16):”A posse de boa-fé só perde este caráter no caso e desde o momento em que as circunstâncias façam presumir que o possuidor não ignora que possui indevidamente.”

    Dentro dos contornos legais bem delineados no CC, a boa-fé significa o estado de subjetividade em que se encontra o possuidor, identificado pelo desconhecimento de qualquer vício que macule a posse (violência, clandestinidade ou precariedade) ou de obstáculo (permissão ou tolerância), impeditivos à sua aquisição. Esse desconhecimento de ofensa a direito alheio (posse ou propriedade) exclui a possibilidade de culpa grave, tomada a expressão no sentido de erro inescusável ou grosseira ignorância (cf. Joel Dias Figueira Jr., Posse e ações possessórias-fundamentos da posse, vol.I, p.251, Juruá, Curitiba, 1994).

    E mais: posse justa não se confunde com a posse de boa-fé, nem a injusta com a má-fé; diz-se que a posse é justa por não estar inquinada de qualquer vício objetivo, pertinente a causa possessonis (título da posse), enquanto a posse de boa-fé está ligada à ausência de defeito subjetivo, matizado pelo desconhecimento da relação viciosa antecedente. Assim, podemos afirmar que a posse é justa por encontrar-se isenta de vícios e, de boa-fé porque sem mácula o espírito do possuidor diante do seu desconhecimento sobre circunstâncias fáticas que poderiam inquinar a sua posse. Por isso, nada obsta a existência de posse legítima em face da origem do título (causa possessionis) e, ao mesmo tempo, seja ela viciosa, em razão do conhecimento da origem violenta, clandestina ou  precária (má-fé) (idem, p. 252/253).

    Enquanto a injustiça da posse determina-se com base em critérios objetivos, “... a boa-fé prende-se a elementos subjetivos, pois diz com a convicção do possuidor.” (STJ, AR 34.250, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, DJU 7/2/94).


    – Exegese da expressão em voga no art. 1.228, § 4° do CC

    A expressão boa-fé apontada no art. 1.228, § 4° do CC há de ser interpretada em harmonia com o próprio Código Civil e as regras constitucionais garantidoras do direito de propriedade, sob a luz de sua “função social”.

    Para alcançarmos esse desiderato, a interpretação há de ser histórica e extensiva, tendo-se em conta que a lei disse menos do que desejava o legislador, pois deveria ter incluído no dispositivo também o requisito da posse justa. Assim, fazia-se mister a seguinte redação: “ O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse justa, ininterrupta e de boa-fé...”

     Se não for essa a exegese conferida à expressão, o novo instituto tão decantado por Miguel Reale em sua Exposição de Motivos ao Anteprojeto de Lei do novo Código Civil, servirá como fomento às invasões de terras rurais e urbanas, em total subversão do direito constitucional de propriedade, o que não foi, com certeza, desejado pelo legislador.

     Não foi por menos que Carlos Dabus Maluf observou que as regras apontadas nos §§ 4° e 5° do art. 1.228 hão de ser declaradas inconstitucionais, posto que, para Ele, “... abalam o direito de propriedade, incentivando a invasão de glebas urbanas e rurais, criando uma forma nova de perda do direito de propriedade, incentivando a invasão de glebas urbanas e rurais, criando uma forma nova de perda do direito de propriedade, mediante o arbitramento judicial de uma indenização, nem sempre justa e resolvida a tempo, impondo dano ao proprietário que pagou os impostos que incidiram sobre a gleba...” (Novo código Civil Comentado, art. 1296, p. 1133, 4. Ed. Saraiva, São Paulo, 2005 – Coordenação de Ricardo Fiuza).

     Sem dúvida, se não conferida ao dispositivo a interpretação que ora expusemos, acertado está o entendimento de Maluf. Todavia parece-nos que a tese por ele defendida não merece guarida, tendo em vista a extensão maior que havemos de conceder a expressão boa-fé ali empregada, sem perder de vista a interpretação histórica do dispositivo, que demonstra claramente a intenção do legislador (desde a exposição de motivos ao anteprojeto de lei no nCC) em harmonizar o instituto da propriedade com a sua função social. Caso contrário, coberto de razão estará o citado doutrinador.

    Vale lembrar a interpretação conferida ao instituto da “expropriação judicial” durante o primeiro encontro promovido pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal – STJ, oportunidade em que participei dos debates e votações, tendo a honra de presidir a Comissão de Direito das Coisas: Enunciado 82: “É constitucional a modalidade aquisitiva de propriedade imóvel prevista nos §§ 4° e 5° do art. 1.288 do novo Código Civil”. Verifica-se, sem maiores dificuldades, que a conclusão a que chegaram os estudiosos da matéria naquele conclave destinado, exclusivamente, a traçar linhas interpretativas sobre o novo Diploma Legal, está da dependência direta e irrefutável da atribuição de um conceito mais amplo à boa-fé, ou seja, diverso daquele insculpido no art. 1.201 do CC, em sintonia com os preceitos constitucionais do direito de propriedade, harmonizado com a valorização da ‘posse-trabalho’, sem servir de estímulo aos invasores de terras urbanas ou rurais.

     É o que se extrai da Exposição de Motivos do Projeto de lei do nCC, da lavra de Miguel Reale ‘quando afirma tratar-se de “... inovação do mais alto alcance, inspirada no sentido social do direito de propriedade, implicando não só novo conceito desta, mas também novo conceito de posse, que se poderia qualificar como sendo posse-trabalho (...). Na realidade, a lei deve outorgar especial proteção à posse que se traduz em trabalho criador, que este se corporifique na construção de uma residência, quer se concretize em investimentos de caráter produtivo ou cultural. Não há como situar no mesmo plano a posse, como simples poder manifestado sobre uma coisa, ‘como se’ fora atividade do proprietário, com a ‘posse qualifica’, enriquecida pelos valores do trabalho. Este conceito fundamental de ‘posse-trabalho’ justifica e legitima que, ao invés de reaver a coisa, dada  a relevância dos interesses sociais em jogo, o titular da propriedade reivindicada receba, em dinheiro, o seu pleno e justo valor, tal como determina a Constituição. Vale notar que, nessa hipótese, abre-se nos domínios do Direito, uma via de desapropriação, que não se deve considerar prerrogativa exclusiva dos Poderes Executivo ou Legislativo. Não há razão plausível para recusar ao Poder Judiciário o exercício do poder expropriatório em casos concretos, como o que contém na espécie analisada.”

     Com razão Teori Albino Zavascki quando assevera ao escrever sobre o controvertido instituto objeto deste trabalho: “Todavia, comparações à parte, o que o novo instituto faculta ao juiz é não desapropriar o bem, mas sim converter a prestação devida pelos réus, que de específica (de restituir a coisa vindicada) passa a ser alternativa (de indenizá-la em dinheiro). Nosso sistema processual prevê várias hipóteses dessa natureza, notadamente em se tratando de obrigações de fazer e de obrigações de entregar coisa.” (A tutela da posse na Constituição e no projeto do Novo Código Civil coletânea de estudos organizada por Judith martins-Costa. A reconstrução do Direito privado, RT, São Paulo, 2002, p. 853, item n.7.1.2.3).

    

    VI – Sumária Conclusão

    A constitucionalidade do novo instituto jurídico inserto no direito de propriedade, com o advento do Código Civil de 2002, como forma de limitação, aquisição e perda da propriedade imobiliária (art. 1.228, §§ 4° e 5° “expropriação judicial”) reside, fundamentadamente, na harmonização adequação e equilíbrio de valores e direitos básicos definidos na Carta de 1988, de maneira tal que se respeite a propriedade privada, com  observância da consecução de sua função social em face da posse pro labore.

     Para tento, mister se faz conferir interpretação histórica e extensiva a expressão boa-fé contida no § 4° do art. 1.228 do CC, assim compreendida nesse contexto o conceito de posse justa (posse não viciada por atos de violência, clandestinidade ou precariedade), sob pena de subversão do próprio estado democrático de direito.